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Relatos de Experiência

Crônicas de Marias - Escrevivências de mulheres que fazem uso de substâncias psicoativas na periferia de São Paulo

Problema/Situação:

O grupo Crônicas de Marias acontece em um Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e outras Drogas localizado na região de Sapopemba/ Vila Prudente no Município de São Paulo, viu-se que o perfil de usuários ativos neste serviço eram de maioria masculina, visto isto elaborou-se uma estratégia de cuidado às mulheres do território que fazem uso de substâncias psicoativas. A ideia surgiu a partir da percepção da equipe sobre qual o espaço das mulheres naquele serviço. Após a contagem de prontuários ativos, percebeu-se que menos de 25% dos prontuários ativos pertenciam a mulheres, então onde estavam essas mulheres? Será que estas não estão em uso abusivo de substâncias psicoativas (SPA)? Será que as mesmas teriam a mesma liberdade, disponibilidade e respeito no acesso ao cuidado relacionado ao uso como os homens têm? Portanto, a partir de conhecimentos prévios de cada uma das profissionais, pois o grupo é de autoria transdisciplinar: uma enfermeira e duas terapeutas ocupacionais, construiu-se um espaço para estas mulheres. A ausência das mulheres no serviço de saúde não é exclusiva deste serviço, pois segundo o estudo de Soccol et. al (2019), há uma baixa produção científica no campo do estudo das mulheres e uso de álcool em detrimento do conhecimento produzido na mesma área sobre os homens. Portanto, para além de olhar para a problemática da presença da mulher nos serviços de assistência, às escritas sobre as vivências têm alcançado outros ambientes e possibilitado outros olhares a mulheres periféricas que usam substância psicoativas.


Objetivos/Resultado esperados:

Anteriormente o CAPS AD II não possuía espaço exclusivo para mulheres, portanto a pretensão inicial era promover o acolhimento e convívio das mulheres através da contação de suas histórias e experiências, que após escritas em forma de crônicas, são refletidas e dialogadas, proporcionando pertencimento, empatia e solidariedade entre as mulheres. Além de provocar por meio de contra narrativas o olhar para as mulheres usuárias de substâncias despidas de preconceito, moralidade e machismos da qual o contexto que nos permeia está submerso. O projeto foi reconhecido em eventos, recebendo a premiação de “Modelo de Atenção à Saúde” em evento nacional. O grupo tem sido implementado em Unidades Básicas de Saúde do território para alcançar outras mulheres. As histórias construídas têm sido gravadas em áudios para facilitar acessibilidade. Também está sendo escrito um artigo científico.


Recursos:

A realização prática da atividade no CAPS AD II em questão, conta com a participação e autoria de três profissionais de nível superior (Uma enfermeira e duas terapeutas ocupacionais), mas é importante salientar que para replicação da prática o único pré-requisito para implementação da experiência é se identificar com o ser mulher. Ademais, um espaço de sigilo e ferramentas de registro, no caso do serviço já aplicado é o Tablet. As histórias acontecem de forma espontânea, de formas diversas e de acordo com a temática trazida por elas naquele dia. A escuta destas histórias, além de serem registradas em forma de escrevivências, também tem potencial terapêutico de acolhimento da situação, sem necessidade de encaminhamentos e intervenções, apenas escutadas, o que permite a horizontalidade da dinâmica. Além disso, sugere-se alguns referenciais teóricos para facilitar a captação e escrita das contações, Maria Conceição Evaristo, através de seu conceito de escrevivências ensina olhar para histórias do cotidiano de forma poética e sensível. Também Carolina Maria de Jesus, através da escrita do que se escuta e do que se vive, ignora o português formal e regras gramaticais, facilitando a produção de escritas livres. Além de que a costura do que se registra com outros tipos de produções culturais, como música, lendas e religiões também é bem vindo.


Resultados alcançados/Impactos:

Os resultados foram histórias registradas em forma de escrevivências (em anexo). Além do sentimento de empatia, solidariedade e principalmente pertencimento, visto que estas mulheres são tão estigmatizadas e culpabilizadas em tantos outros espaços que frequentam, que um lugar onde as aceitam como são e pelo que são é um momento de respiro em suas rotinas.
Os impactos vistos nas participantes do grupo são mudanças na percepção de si, pois a partir da fala de suas histórias, associado a materialização da escrita de sua vida, possibilita o despertar da consciência, ou seja, a mulher deixa de se ver apenas como uma ideia e passa a enxergar sua existência. Este impacto muitas vezes é um resultado que não é um processo consciente, mas subjetivo, não podendo ser mensurado em número ou tempo.


Desafios:

Como as mulheres são as principais provedoras de muitas famílias no contexto em que estamos atuando, não conseguem encontrar um momento para o tipo de cuidado direcionado ao seu uso, diferente do que acontece no cuidado da Atenção Primária. Considerando isto, sabemos que muitas mulheres são cuidadoras únicas de seus filhos, portanto é permitida a vinda de crianças, e se necessário uma das terapeutas do grupo proporcionará um ambiente de acolhida, e aos demais dependentes e acompanhantes é ofertado espaço de espera.


Lições aprendidas:

A partir da construção das histórias pode-se observar a construção de vínculos entre as participantes do grupo. A solidariedade entre as mulheres e a formação de um ambiente de respeito pela vivência da outra e livre de julgamento, proporciona um espaço de pertencimento e acolhimento. Ali todas são mulheres e, mesmo que algumas sejam as profissionais do serviço, aprendeu-se a performar esta posição a partir de um lugar horizontal, costumava-se dizer que se despiam do lugar de técnico terapeuta, mas porque um terapeuta não pode ocupar este lugar de “ gente que sente” também.


Vídeos

Equipe


Responsável:
Karoline dos Santos Germano

Filiação
Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina
Cargo
enfermeira
E-mail
karolgermano@hotmail.com
Telefone
(11) 94505-6676
ORCID

Juliana Aureana Leal

Filiação
Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina
Cargo
Terapeuta Ocupacional
E-mail
jualeal@gmail.com

Tatiana Natalino Vilches

Filiação
Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina
Cargo
Terapeuta ocupacional, especialista em saúde mental e saúde da família
E-mail
tati-vilches@hotmail.com


Membros:
Tatiana Natalino Vilches

Filiação
Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina
Cargo
Terapeuta ocupacional
Formação acadêmica
especialista em saúde mental e saúde da família
E-mail
tati-vilches@hotmail.com

Karoline dos Santos Germano

Filiação
Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina
Cargo
enfermeira
Formação acadêmica
Mestre em Saúde Mental
E-mail
karolgermano@hotmail.com

Juliana Aureana Leal

Filiação
Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina
Cargo
Terapeuta Ocupacional
E-mail
jualeal@gmail.com

Outras Informações


COLEÇÃO

Secretaria Municipal da Saúde (SMS-SP)

ÁREA TEMÁTICA

Não se aplica

Situação da experiência

Concluída

DATAS

Início: 2021-11-18
Fim: 2022-09-14

PAÍS

Brasil

ESTADO/REGIÃO

Vila Prudente/ Sapopemba

CIDADE

São Paulo

Local

CAPS - CAPS AD II SAPOPEMBA - Município: São Paulo - UF: SP (São Paulo) - CAPS são instituições destinadas a acolher os pacientes com transtornos mentais.

POPULAÇÃO

Mulheres

IDIOMA

Português

Descritores

Saúde Mental
Psicotrópicos
Mulheres

Palavras-chave

Saúde Mental
Substâncias Psicoativas
Mulheres
Assistência à Mulher

Produtos, materiais e publicações

Diário de São Paulo - 21 de março de 2022
Boletim Conecta - edição 77 - 28 de março de 2022

Observações

Em que mar eu fui parar
(por Maria Mar)

Dizem que o Rio, antes de entrar no Mar teme de medo
Ele olha pra trás, para a jornada que percorreu, para as montanhas que atravessou e suas lembranças quando uma pequena nascente…. mas não pode voltar atrás, ninguém pode voltar atrás.
Maria Mar hoje não precisa ser mais Rio, sua mãe que por muito tempo foi sua margem encerrou sua missão quando transformou Maria em Mar, que de pacífico nem o nome.
Ela está em busca de qualquer margens que possa contorná-la, pois a grandeza do oceano é assustadora
Mas Maria Mar, calma, você só está no meio de uma tormenta
Dói mais quando você insiste em se agarrar a um bote salva vidas que só quer te afogar na imensidão do seu ser.


Cuidado de si

Foi a primeira vez que escutei sobre autocompaixão em um grupo
Sobre a calma e respeito a jornada de vida de cada um
O cuidado com a alma que sempre vi nos discursos das mulheres destinados a terceiros
Ela se dedicava a ela, e foi nesse momento de fala que eu vi que tinha muito a aprender com ela
Ela pede ao corpo perdão e o recebe (só a coluna que é mais rancorosa)
Talvez seja o único perdão que de fato precisamos
Aquele corpo de 70 anos, conservado na cocaína como ela mesma dizia
Estava, na minha percepção sustentado na esperança, sabedoria e no auto amor que eu desejo a todas mulheres

A história da calça branca

Angela Diniz, Elisa Samudio, Daniela Perez, Carolina Dieckman, Maria da celebração, as marias estagiárias… foram os nomes citados de mulheres que infelizmente “celebram”o agosto lilás
Os motivos mais injustificáveis são usados para um olho roxo. Foi assim com a Maria Anjo, em um dia em que ela não quis comer o macarrão feito por ele.
Ela contou também como uma calça branca, que ao mesmo tempo a fez perder a visão de um olho, ao mesmo tempo abriu seus olhos para a violência que ela sofria. Ela disse que a gente só vê que o cara não é bom, depois que ele quebra um braço nosso.
Para Maria Anjo, as violências vinham de outras formas também, como as tantas portas de emprego que foram fechadas em sua cara, foram tantas negativas, que ela achava que sua vida era um grande sinônimo de NÃO.
Quando a gente usa crack ninguém escuta a gente, então a gente pede ajuda pra Deus. Aí um dia Deus entrou na favela e encheu a cara dele com pinos ortopédicos.
A Maria Anjo disse que uma mulher que não sofreu violência, não é mulher, então criamos ali uma regra entre todas as marias: Se alguma de nós apanhasse pela primeira vez, não aconteceria uma segunda, nunca mais.

Abaixo segue a crônica escrita em um dos grupos:

Prisão perpétua

Aquele grupo instigado por perguntas, trouxe um importante interrogatório.
Porque somos mentirosas?
Porque nós que usamos drogas mentimos tanto?
Eu já menti pra usar, já menti pra minha filha não vir me visitar, já menti pra minha mãe pra não vir ao Caps.
Só consegui vir hoje porque menti pra mim mesma …
Será que se a gente parar de mentir, conseguimos sair dessa merda de droga?
Mas as mentiras que contamos são tão carinhosas e acolhedoras, coisa que o mundo real não faz por onde.
Minha filha percebe nos meus olhos quando eu bebo, e quando eu não bebo ela não acredita.
Talvez seja por isso que a gente mente, porque a nossa verdade e a nossa mentira tem o mesmo peso.
Provar a verdade dá muito mais trabalho que mentir.
Eles chamam isso de amor, de cuidado, mas esse amor transforma minha vida em um tribunal, onde cada atitude é condenável e passível de pena aberta ao júri popular.
Na nossa vida ninguém é inocente até que se prove ao contrário.